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É possível surgir uma Ursal? - Editorial

Editorial É possível surgir uma Ursal?

Em debates políticos, o alívio cômico é garantido pelos candidatos nanicos. Na ânsia de ganhar atenção, eles apelam a extremos, com efeito intencional ou não de piada. A postura pode ser risível, como a de Plínio de Arruda. Pode ser polêmica, como a de Eneias Carneiro. E pode ser conspiratória, como a de Benevenuto Daciolo. Em debate televisivo, ele roubou atenção em 2018 ao perguntar a Ciro Gomes o que seria Ursal, a suposta União das Repúblicas Socialistas da América Latina. O assunto virou meme e piada. Mas revela um temor recorrente e nada cômico: seria mesmo possível surgir uma América Latina comunista, unificada a golpes de foice e de martelo?

Desde a queda do muro de Berlim, a América Latina parece ter se candidatado a sucessora da União Soviética. Pelo menos é o que sugere Olavo de Carvalho com base no Fórum de São Paulo, organizado por governantes e militantes progressistas após o colapso soviético. O Fórum tem sido denunciado de forma insistente por Olavo, o criador do termo Ursal. Segundo o filósofo, o arranjo conspiraria para formar uma nação continental comunista na América Latina. Depois de muita chacota, Olavo enfim colheu algumas vitórias. O hermetismo do Fórum gerou inquietação. Além disso, a política externa do governo Lula fez soar o "alertar vermelho". No chamado cone sul, era voltada a governos latino-americanos de extrema esquerda. Foi o caso de Hugo Chávez e de Evo Morales. O bordão "Olavo tem razão" virou um grito de guerra dos que temem algo como uma Ursal, novidade que em verdade já surge antiga.

A ideia de unir os países da América Latina vem dos tempos coloniais. Ela iniciou com a própria formação dos países latino-americanos. Inspirado pelos eventos estadunidenses, Símon Bolívar quis fazer do processo uma guerra da independência. Dedicou seus melhores esforços para expulsar os espanhóis e unir os novos países em uma Grande Colômbia. Nisso se contrastou com José de San Martín, que lutou para apartar as brigas internas e a constituir países separados entre si. Ao final do processo, a Grande Colômbia fracassou. Prevaleceu a aposta de San Martín. O ideal de Bolívar foi recobrado em diversas versões posteriores. A mais básica ainda é a teoria da Pátria Grande,  popularizado pelo argentino Manoel Ugarte. Outra tendência foi uma versão leve, calcada na moda de formação de zonas econômicas. Em ambos os casos, os projetos não deram certo. Um indicativo de como uma Ursal seria de difícil confecção.

Em termos políticos, a América Latina está muito longe de ser uma terra onde todos falam espanhol e pensam da mesma forma. É uma região díspar, assimétrica, belicosa. Seus países possuem conflitos territoriais recentes. É o que ocorre entre Peru e Equador. Além disso, nutrem ressentimentos entre si. Bolívia acusa o Chile até hoje de ter roubado o acesso boliviano ao mar. Sem contar que divergem em muito em interesses. Colômbia é voltada à América do Norte, enquanto Chile se beneficia dos mercados asiáticos. Finalmente, são assimétricos demais. Com todo seu território e recursos, o Brasil causa desconfiança entre os demais países. Por tudo isso, é improvável que os estados da região abram mão de suas soberanias em favor de algo como uma Ursal. Desse arranjo mal sai um Mercosul e um Unasul, que estão em estertor.

Em termos econômicos e geográficos, o ideal de integração latino-americano também esbarra em gargalos. Os países "ursalinos" são limitados demais. Tudo que compartilham entre si é a escassez e o delírio de que a política deve preceder a economia. Dificilmente conseguiriam recursos, por exemplo, para se integrar logisticamente. Mesmo que conseguissem, isso não traria ganhos suficientes. O próprio governo Lula sofreu essa impossibilidade. Alcançando a dianteira econômica regional, ele investiu prodigamente nessa logística. Construiu pontes, avenidas, até mesmo um porto em Cuba. Tudo que conseguiu foi desperdiçar dinheiro para se conectar a países com economias progressistas e, portanto, condenadas ao fracasso. As obras viraram sucata – e um lembrete de como uma Ursal permanece improvável.

Por tudo isso, a Ursal é uma impossibilidade semelhante à Grande Colômbia. Por sorte, por azar, terá problemas demais em deixar de ser um delírio progressista e anacrônico – seja como conspiração socialista, seja na versão leve de plano de integração econômica. Quem sabe, o delírio também seja dos conservadores. A Ursal tem sido tratada, com certa justiça, como teoria conspiratória: não parece haver provas ou registros de que havia a intenção concreta de criá-la. Isso não significa que a Ursal seja inofensiva. Mesmo entendida como um mero ideal de integração, ela foi capaz de infligir prejuízos. Como comentado, o sonho regionalista levou o Brasil a um desperdício gigantesco de dinheiro em obras logísticas inúteis. Além disso, a Ursal gera diversos riscos políticos. Mesmo negado ou amenizado, o ideal "ursalino" tem sido politicamente levado a sério, causando medos, temores e radicalização.

Talvez fosse melhor aos países latino-americanos esquecerem o legado de Bolívar e retomarem o de San Martín. Tentando ser a sucessora da URSS, tudo que a América Latina conseguiu foi criar sua versão pobre de guerra fria.

- A redação.


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