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“Nostaldura”: o preço amargo do sucesso democrático - Editorial

Editorial “Nostaldura”: o preço amargo do sucesso democrático

Um dia as pessoas irão rejeitar esse regime. O motivo disso não vai ser o fracasso dele, mas o sucesso. Acomodadas, mal acostumadas, as pessoas irão baixar a guarda. Elas irão esquecer como pode ser difícil conquistar e manter esse regime. Elas irão ignorar como o regime aperfeiçoou suas vidas. Elas maldirão o regime por sua "moleza" e "lentidão". Elas rogarão por um regime "firme", "rígido", "confiável". Apocalíptica, a profecia foi escrita para o capitalismo. Mas serve à democracia. E talvez esteja se realizando no Brasil.

Neste ano eleitoral, a redemocratização do Brasil completa trinta e três ano. É uma demonstração  de resiliência e de longevidade. Apesar disso, a ocasião está longe de ser festiva. Em plena véspera de eleições, a democracia do país enfrenta suas críticas mais acirradas. A maior parte delas parece baseada em uma comparação com a ditadura. Após anos de negação, a "linha dura" é escancarada no debate, surgindo como referência contra o atual regime político.

A opinião popular indica essa tendência alarmante. Pesquisa realizada pelo Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação informa que a maior parte dos entrevistados está insatisfeita com a democracia. Além disso, ela apoiaria um golpe militar. Há também evidências mais informais desses fatos. Com propostas "linha dura", candidatos à presidência parecem ser beneficiados por esse tipo de opinião.

Esses indícios sugerem que o regime militar persiste em nosso imaginário. A ditadura é um provável critério de avaliação: "se a democracia quiser provar seu valor, ela tem de ser melhor do que os militares!". É claro, nem toda crítica atual segue essa tendência. É o caso da vertente liberal democrata, que ganha adeptos, presidenciáveis e partidos. Essa vertente no entanto é periférica. A ditadura parece prevalecer.

Se há de fato essa "nostaldura" – nostalgia da ditadura –, pode ser fácil inferir seu raciocínio. Parte dela sem dúvida aposta que militares são infalíveis. Afinal, eles foram responsáveis pelo Milagre Brasileiro, época de crescimento singular. Outra parte com certeza aposta que militares são incorruptíveis. A prosperidade do Milagre seria "prova" de que o país não teria sido "roubado". Sejam quais forem essas apostas, elas certamente são simplórias e arriscadas. Todas ignoram os vícios da "linha dura".

Para fazer sentido, a "nostaldura" precisa mascarar as decepções impostas pelo governo militar. Sim, elas existiram. Os militares foram corruptos. Exemplo disso foram os "governadores biônicos", eleitos de maneira fraudulenta. Além disso, foram incompetentes. É o que indicam os resultados pífios de seu programa nuclear. Finalmente, foram inconfiáveis. Agiram sem transparência e violaram o limite de intervir somente para proteger a democracia.

A "nostaldura" também ignora como a democracia saneou esses problemas legados pelos militares. Mecanismos de eleição ficaram mais sólidos. Os gastos públicos se tornaram mais transparentes. A liberdade de expressão ampliou a vigilância civil. O indivíduo recuperou suas salvaguardas contra abusos do estado. Dois impeachments ocorreram sem maiores abalos. Ainda estamos longe de ser uma democracia perfeita. Mas podemos nos aperfeiçoar – e isso é democrático o bastante.

Nada disso talvez seja suficiente para destronar a "nostaldura". Ela desfruta de um momento oportuno. Anos de hegemonia progressista expuseram dolorosamente nossas maiores falhas democráticas. Corrupção e incompetência ensejaram a mais profunda decepção: "para que democracia, se o único resultado foi esse atraso?". Isso certamente redimiu a ditadura, que passou a ser lembrada pelos acertos.

Ironicamente, a "nostaldura" somente obteve alcance por meio das principais virtudes democráticas: o debate, a autocrítica, a liberdade de expressão. Sua aceitação não revela vícios democráticos. Antes, é o preço amargo de suas virtudes. Se um dia a profecia se realizar e a "nostaldura" prevalecer – é irônico pensar que deveremos isso ao sucesso democrático. Mesmo que o preço desse sucesso tenha sido o fim desse regime.

A redação.


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